quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Alice de sonhos

Na pequena cidade de Palhas Andes, no sul de Bentas, pessoas simples com suas vidas simples e seus afazeres simples passavam por mais um dia de trabalho (simples?). Ninguém ouvia os gritos de súplica daquela menina dos olhos claros e cabelos negros; ninguém ligava para a mesmice da vida: exceto ela, criatura de desejos e ilusões.
Todas as noites, antes de dormir, ela fazia um pedido para o anjo Luiz, o qual ela conhecera em um de seus sonhos, um sonho belo que se repetia todas as noites. Tira-me daqui, anjinho, que quero vida! Tira-me daqui...
E colocava-se para dormir, na espera de, alguma manhã, encontrar-se numa outra cidade, quem sabe noutro país? Os amigos dela gargalhavam ao ouvir da ilusão da menina de olhos esperançosos: até parece que existe um anjo Luiz! E mesmo se ele existir, jamais dará atenção a uma criança que vive numa cidade como essa! Somos privilegiados, Alice! Temos paz e solidariedade, vivemos sempre tranqüilos. O que você pode querer além do que temos?
Mas nada conseguia conter sua ânsia. Ela queria mais! Mais, mais, muito mais! Berrava com o máximo entusiasmo, tanto que ninguém estranharia se ela algum dia desaparecesse sem avisos.
Certa noite, ela não gritou nem fez desejos ao anjinho. Estava cansada demais e, por isso, pegou logo no sono. Não teve o sonho de todas as noites: um paraíso nevoado, nada parecido com sua cidade; nessa noite, porém, a única coisa que invadiu seus sonhos foi a escuridão.
Ela acordou assustada, temendo ter quebrado um pacto com aquele anjo misterioso. Perdoa-me, anjinho, perdoa-me! Nunca esqueci de ti, mas não sei se sabes quem sou! Não sei se queres me ajudar! Prova, meu anjinho, que um dia daqui me tirará!
Uma luz brilhante invadiu seu quarto. Ela se entusiasmou, pensando ser aquele o anjinho com o qual ela tanto sonhava. Olhou com mais atenção e pôde ver que aquele clarão vinha de um farol, que se posicionava na parte da frente de um transporte de metal, algo que ela nunca tinha visto antes. Quanta tecnologia possui esse anjo, ela pensou, e seguiu correndo para os braços daquele velho homem que estava parado em frente a sua casa. Sem pensar, deu um abraço nele: anjinho, sabia que viria me salvar! Para onde vamos?
Tudo que ela ouviu como resposta foi uma risadinha. Não se importou, pois nunca havia visto o anjo Luiz falar. Será que anjo algum fala?
Carinhosamente, o velho a colocou em cima da moto, fazendo um sinal para que ela se segurasse a ele. Alice fechou os olhos, esperando ansiosamente pelos novos lugares e por tantas pessoas desconhecidas que veria. Olhou para o velocímetro, que marcava 170 km/h. Ela não sabia o que aquilo significava, mas podia sentir toda a cidadezinha voando rapidamente para seu passado.
Chegou, enfim, ao seu destino. Um aglomerado de inutilidades captou sua visão, e ela não entendia nada, mas demonstrava sua profunda alegria em não conhecer. Quando vamos conhecer a cidade? Ela perguntava e perguntava, sempre sem respostas.
A moto ia diminuindo a velocidade e entrando por um belo escuro, trazendo ainda mais curiosidade para a menina dos desejos. Enfim, pararam em um prédio que parecia ser abandonado, e ali o homem, após pôr a menina nos braços, entrou cuidadosamente.
Era frio e úmido, além de sujo, aquele lugar. Não havia pessoas, não havia nada. Exausta, a menina decidiu ter uma noite de sono, para só então voltar a questionar seu suposto anjinho.
Acordou sozinha, com um bilhete preso à testa “Fui comprar comida, criança”. Que estranho ele me chamar de criança. Meu anjinho não sabe meu nome? Mais estranho ainda é ele ter que se alimentar. A menina passou um tempo refletindo, mas deixou pra lá. Passaram-se algumas horas, e nada do anjinho voltar. Alice ficou assustada, então se pôs a rezar: anjinho, cadê você? Por que não volta para cá? Vamos conhecer o mundo!
E o homem voltou. Nada se parecia com um anjo. Estava imundo e com um cheiro estranho. Álcool? Ele andou bebendo? Ele estava meio zonzo, por isso a menina imaginava que sim, ele tinha bebido. Anjinhos bebem? Pensou novamente: ele não estava se parecendo nada com o anjo Luiz; barba mal feita e cabelos despenteados. Anjinho, qual é o seu nome? Ela perguntou. Você é o meu anjinho Luiz? Não se parece muito com os meus sonhos...
Sonhos não são realidade, menina. Pela primeira vez ele respondia alguma pergunta.Que voz grossa e seca! A menina ficou apavorada. Para sua sorte, o bêbado caiu no chão e ali ficou, pelo resto do dia. E da noite. E dos três dias seguintes.
Alice ficava cada vez mais desesperada, pois não tinha dormido nenhum segundo daquelas setenta e duas horas.
Finalmente, caiu no sono. Sonhou com aquele anjo bondoso com o qual sonhava em Palhas Andes. Foge, querida! Foge que eu te ajudo a voltar para casa.
Em pouco, ela se levantou, correndo pelo espaço e procurando por uma saída. As janelas eram difíceis de abrir, a porta estava completamente trancada. É, aquele homem havia pensado muito bem em como me prender aqui. Tentava abrir as janelas, e com muito esforço e alguns minutos, conseguiu.
Chegou à rua, sem saber o que fazer? O que faço, meu anjinho? Ajuda-me!
Depois disso, um pedaço de papelão começou a brilhar. Ela imediatamente subiu no papel, e numa velocidade ainda maior aquilo começou a voar. Voou alto e longe, por isso em pouco a menina já via sua cidadezinha querida. Que saudades tuas senti, Palhinhas!
Chegou ao solo e foi direto para casa. Todos ficaram surpresos em vê-la, pois pensaram que ela havia realizado seu desejo de conhecer o mundo, de sair daquela vida. Experimentar uns dias longe do confortável fê-la ver o quão especial era o local em que ela vivia. Somos mesmo privilegiados aqui, ela sussurrou para seus amigos (para que ninguém soubesse como seus gritos do passado estavam errados, pois o paraíso estava bem ali).

(Fruto de uma aula de teoria da literatura e pensamentos maldosos)

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"Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo, e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros." Caio F

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